Guerra ao Tesão
Se o sexo é parte do cotidiano adulto, por que ele precisa de um motivo para existir na arte?
É cada vez mais comum no zeitgeist das redes sociais e da crítica de cinema aplicar o carimbo de “inútil” a cenas de sexo ou minimamente eróticas. Apesar de ser valorosa a crítica da objetificação do corpo feminino e do erotismo masculinista em obras como The Idol, é raro o discernimento entre o erótico, o explícito e a exploração. Sim, a Guerra do Tesão já é um tópico amplamente discutido nos círculos neo-hipster do Twitter, mas eu ainda quero expor um pouco do que eu penso.
Os jovens da década de 2020 têm sido caracterizados como conservadores, socialmente inaptos, viciados em pod (ao invés da opção mais viril, o cigarro), ruins com computadores e menos bonitos que seus jovens veteranos. Algumas dessas características são justificáveis, o período da pandemia teve efeitos significativos na ansiedade social e sociabilidade em geral das pessoas, é de se imaginar que essa influência se estendeu à formação de personalidade dos adolescentes e crianças da época. Existe também um movimento generalizado desde o meio da década de 2010 de conservadorismo na esfera privada e artística, provavelmente efeito tardio da Recessão de 2008 e do fracasso da Guerra ao Terror. Jovens são especialmente suscetíveis à propaganda, porém não são os únicos, pessoas de todas as faixas etárias estão inseridas na neurose puritana direitista e esquerdista. A repulsa ao sexo adotou diversas facetas: tradwife-ísmo, incelismo, televangelismo passando longos minutos condenando mulheres lascivas ao inferno, debates no Tumblr sobre assexualidade que acabavam colocando ela como moralmente superior, políticas anti-nudez na mídia, o fenômeno Todos são Lindos, Ninguém tem Tesão, o movimento NoFap, entre outros.
É sim preocupante ver a desnaturalização do sexo em tantas esferas diferentes, porém, seguindo o espírito dialético da cultura, esse fenômeno foi precedido por outro diametralmente oposto. Os anos 2000 e a primeira metade da década de 2010 foram (de forma artificial e objetificante) hipersexuais e anti-eróticos na mídia, toda a celebridade feminina tinha a obrigação de ser uma sex symbol. Já a segunda metade da década de 2010 teve, junto com a ascenção do fascismo masculino, a ascenção do feminismo liberal, pregando às jovens que uma carreira pornográfica ou como sugar baby é uma escolha empoderadora e que você deve ser uma cool girl, sempre disposta a sexo e amante do fetichismo. Por mais que esse incentivo não fosse compatível com a vida sexual cada vez menos ativa da população jovem, ele ainda foi forte o suficiente para que nos últimos três anos mulheres jovens se sentissem cada vez menos seguras em suas vidas sexuais. O celibato feminino e a crítica à pornografia ganharam tração entre adolescentes, que pouco tempo atrás eram bombardeados por conteúdo e ideologia exploratórios de sua juventude. Eu entendo plenamente o receio atual, o medo de sexo, mas acho que há o perigo de crítica e autopreservação se tornarem ataques conservadores (por exemplo, acusar de formas bíblicas pessoas que expressam o mínimo desejo sexual na internet).
A questão pornográfica é parte da teoria feminista desde a Segunda Onda, com Andrea Dworkin sendo o nome mais reconhecido. Em seu livro Pornography: Men Possessing Women, ela organiza em sete frentes diferentes o poder do homem: a afirmação metafísica de si mesmo; força física (não intrínseca ao corpo, mas sim a possibilidade de usar essa força contra outras pessoas); a capacidade de aterrorizar; o poder de nomear; o poder da posse; o poder do dinheiro; e o poder do sexo. Nesse esquema, a pornografia é apenas parte pequena, porém simbólica, do sistema político patriarcal. Nessas representações visuais, mulheres são fisicamente possuídas por homens, atendem exatamente aos desejos do espectador, estão dispostas a serem humilhadas e seus corpos são des-subjetivados, objetificados. Além disso, Dworkin também aponta a violência física e sexual praticada contra mulheres na indústria pornográfica. Pornography é um livro político, por vezes psicanalítico, porém não é um tratado ético, não há o objetivo de valorar ou recomendar comportamentos. Essa diferença essencial de abordagem é uma das distinções mais importantes entre a crítica feminista à pornografia e o puritanismo religioso-cultural.
É importante notar que a definição de pornografia a qual o feminismo de Segunda Onda se refere é a de filmes produzidos industrialmente por meio da filmagem de sexo não-simulado. Historicamente, “pornografia” é uma palavra carregada, foi usada para se referir a quase qualquer conteúdo sexual, erótico ou explícito nas representações, por isso há um perigo na retórica anti-pornô inespecífica, não-feminista. Essa retórica já existia há séculos enquanto forma de controle de corpos, de segregação entre a sexualidade honrável e a sexualidade degenerada no contexto cultural europeu, que, conforme Foucault, é historicamente obcecado por sexo. Considerando a crítica feminista, é quase impossível qualquer ato sexual estar fora da lógica de dominação patriarcal, mesmo quando a inverte, mas todas as esferas de existência social também são assim. A guerra, o trabalho, a família, a intelectualidade, a arte, tudo é permeado em algum nível e extensão pela supremacia masculina. A ação feminista a ser tomada não é a recusa em participar na vida, mas sim estudar e se organizar para resistir metafísica e politicamente ao regime de verdade e de força do patriarcado.
Falo muito sobre o feminismo anti-pornografia não apenas por eu mesma ser uma feminista chatérrima, mas por ele ter sido mal utilizado nos últimos anos. Há em muitos discursos contrários a cenas de sexo no audiovisual versões malformadas dessa crítica, acusações de objetificação sem saber o que exatamente essa palavra significa. Aliás, a tendência anti-sexual do cinema mainstream é muito ligada à objetificação dos corpos (perfeitos) dos atores, corpos inertes, que não se tocam e não se sujam, visualmente exuberantes e tatilmente ascéticos. As personagens femininas são descoladas, de pele perfeita, rosto cirurgicamente aperfeiçoado e recatadas o suficiente para o público não sentir que ela é uma vadia, mas falam de sexo para não parecerem carolas. Os homens são viris e limpos, politicamente corretos enquanto fazem desfiles masculinistas e militaristas, economicamente bem sucedidos e eles fazem sexo, mas não trepam.
Mesmo higienizadas e crescentemente menos explícitas, as poucas cenas de sexo que existem no cinema mainstream da última década ainda são criticadas por existirem, colocadas como inúteis para o roteiro. O essencialismo narrativo já é um erro crasso em qualquer tentativa de crítica ou apreço ao audiovisual, Susan Sontag já nos avisou dos riscos dessa abordagem no célebre ensaio Contra a Interpretação. Para além desse debate complexo sobre a forma do cinema, que consigo representar adequadamente em um texto de opinião, existe outro debate complexo sobre a ideia de “utilidade” na arte. Há algo de muito industrialista a anti-subjetivo em pensar a arte como algo útil, um objeto de consumo ao invés de um objeto de observação, um objeto de sensação. Sim, isso é uma característica que sempre existiu na arte mecanizada pelo esclarecimento, e a arte (assim como qualquer outra manifestação estética) é sujeita à ética e carrega em si a moral. Ainda assim, há um nível inorgânico de utilitarismo e racionalismo no espectador atual, até mesmo o entendimento de arte ideal como “diversão fútil” (anti-intelectualista) apenas pode existir se a pessoa anuncia aos quatro ventos que é assim que pensa. Para além do conservadorismo generalizado, outro exército na Guerra ao Tesão é a arte como mensagem útil.
Pessoas, em qualquer período na história, usam a arte para expressar sua vida, suas crenças, suas emoções, suas neuroses e até mesmo suas fantasias. A arte erótica existiu em praticamente todas as sociedades, pois o sexo é um fato, ele está presente na vida de todas as pessoas em todos as épocas. É interessante, aliás, o quanto que a relação de uma sociedade com o fato sexual revela muito da relação dialética entre sua normativa moral e seus fenômenos orgânicos. A arte barroca, por exemplo, tem cenas sexuais tortuosas, corpos contorcidos e beijos doloridos, a poesia muitas vezes é sexualmente explícita, “suja”, quase hedonista e carregada de culpa. O detalhamento, contraste e recorrência desse tema nas obras mostra como as sociedades católicas da Contrarreforma eram obcecadas pelo sexo que não deveriam desejar com tanta intensidade. Outro exemplo é o cinema da década de 1970, com suas cenas sexuais de câmera parada, o corpo totalmente nu, com pouca ênfase nos detalhes e uma qualidade estilística naturalista. É interessante perceber que com a Revolução Sexual fresca na memória, o sexo se tornou menos espetacular, mais amplamente representado e parte do cotidiano de todos os tipos de personagem. Se opor à existência de cenas de sexo é fechar uma janela essêncial à vulnerabilidade humana.